sexta-feira, 3 de agosto de 2012

A casa de minha avó Alice

A casa de minha avó já não existe mais fisicamente, entretanto guardo em minhas memórias as formas, as cores, os cheiros e os sabores ali vividos. Mais que paredes, portas e janelas, meus tios e minha avó tornavam o lugar perfeito. Na casa moravam além de minha avó; Zene, Dete e Tio Gilson.

Sempre que meus pais viajavam e não podiam me levar, me deixava na casa de voinha. Depois que passamos a morar em Santo Antônio, toda vez que ficávamos sem empregada (bem frequente) ou essa tinha que sair cedo, eu também era levado pra lá. Passava a tarde me divertindo com os gatos de minha avó, no quintal ou com meus tios e avó.

Minha avó Alice era uma figura ímpar. Aproveitei pouco sua companhia. Chegando ou saindo, da casa de minha avó sempre pedia a bença dela. "Deus lhe dê vida e saúde, meu filho". Lembro de minha avó escrevendo algumas cartas, fazendo palavras cruzadas e vez ou outra jogando "burro" (jogo de cartas) comigo - deixando ganhar quase sempre. Lembro dela no quintal cuidando das roseiras, ou atrás dos gatos. Comigo e minha irmã sempre foi extremamente cuidadosa; chamáva-nos por nome de bichinhos. Vez ou outra que dormia num dos quartos, ela sempre pegava ou mandava uma das minhas tias colocar uma cadeira pra evitar que caisse da cama. Lembro que mesmo quando tnha uns 14, 15 anos minhas tias colocavam uma cadeira.

Do meu tio Gilson lembro do jeito engraçado, a larga risada debochada quando chegava contando algum caso; à noite o cheiro de pão esquentado com garfo no fogão, cheio de manteiga e açúcar, a paixão pela política e os papeis da Filarmônica. Não faz um mês, estive no sobrado da Amantes da Lira. Hesitei alguns minutos ao entrar, tamanha eram as lembranças das idas com meu tio aquele prédio. Quando passava as tardes na casa de minha avó, vez ou outra ele me levava pra tomar um refrigerante em algum dos bares próximo enquanto conversava com os amigos ou me levava na Lira e enquanto ia resolver alguma coisa, me  deixava com um bloco de papel para escrever.

Zene e Dete para mim foram como uma segunda mãe, e por isso talvez ou por tanto andar com elas, nem as chamava de tia; chamava direto pelo nome.

Lembro quando Zene ainda trabalhava na contabilidade de Joel, que ficava num prédio ao lado da Panificadora Soares, próximo as quatro esquinas. Subia uns dois pequenos lances de escada e em um canto do escritório ficava a mesa dela. Uma calculadora de manivela que adorava. Apertava as telas dos números, apertava a operação, novamente os números e puxava a alavanca e a máquina prensava o resultado. Nem me preocupava com o resultado, achava o máximo a alavanca e o som que fazia.

Era Zene quem fazia os meus bolos de aniversário. Deliciosos, camadas de glacê, bordas e detalhes feitos com bomba e bicos especiais. Quando não era meu aniversário havia outros encomendados. Mesmo assim, sempre sobrava ou ela deixava pra mim um pouco de glacê. Eu abria bem as mãos e ela enfeitava as pontas dos dedos com um pouco de glacê e um bom montinho no meio da palma. E o sorriso vinha sempre que eu lambia tudo, sem deixar vestígios, e pedia mais.

Mesmo depois de velho, quando chegava de Salvador, e tinha algum bolo sendo finalizado, ela sempre avisava que tinha glacê e se eu queria. Eu logicamente, nunca negava.

Uma vez, passei mais de um ano com uma unha encravada, fui com meus pais na clínica e marcamos a mini-cirurgia. No dia, entretanto, minha mãe daria aula pela manhã e meu pai não poderia faltar ao banco. Nada que fosse demais eu ir sozinho. Já devia ter uns 14 anos. Lembro de minha mãe dizer que minha tia iria comigo, que ela não queria que eu ficasse sozinho, mesmo que não precisasse. Era esse o tipo de cuidado que ela tinha pra comigo.

Zene adorava viajar. Lembro que viajava quando mais moça para vários lugares. Ia com uma outra tia de segundo grau (Edite). Não perdia um convite para ir a Salvador. Adorava shopping, ver as decorações das lojas, as lojas enfeitadas para o Natal.

Dete partiu recentemente e faz-me uma falta muito grande. Falta-me palavras pra descrevê-la em toda a sua simpliscidade, inocência, bondade, carinho e zêlo. Desde pequeno até dias antes de partir, tinha sempre um docinho, um chocolate guardado pra me presentear. Nunca vi, nem acredito que alguma vez ela tenha levantado a voz com alguém, ou que tenha falado qualquer que seja uma palavra mal de alguém. Era o tipo de pessoa que via o lado bom das coisas e não via maldade em nada.

Uma das minhas memórias mais antigas é de ter ido na feira com Zene e Dete de mãos dadas. Devia ter menos de 6 anos. Na época a rua da igreja era de paralelepípedos e havia raríssimos veículos na cidade (seja carro ou bicicletas); andávamos pel meio da rua quando lembro de pisar numa lata aberta e cortar o pé. Lembro da preocupação delas e do cuidado em fazer os curativos. A cicatriz desapareceu com o tempo, mas o cuidado e a preocupação de minhas tias guardo até hoje.

Lembro que foi em frente a mesa de jantar a primeira vez que carreguei ainda filhote a gata de minha avó; que assustada ao carrega-la no alto, passou a garra em meu rosto de raspão, fazendo descer algumas gotas de sangue para susto de todos. Nunca depois disso tivemos qualquer outra queixa desse animal que foi o xodó de minha avó. Quando minha avó faleceu, o corpo foi velado na sala da casa. Todos da família entenderam quando a gata passou todo o dia deitada embaixo do caixão, como entendesse o que se passava e velasse o corpo.

Lembro das invenções com Nel de tentar fazer uma piscina na lateral da casa, colocando restos de azulejos no chão e enchendo de água, que pra nosso desespero não funcionou.

Lembro do pinheiro no meio do quintal onde subia alguns galhos para depois sair me coçando todo. E do pé de carambola, que por um tempo teve um balanço onde brincávamos.

A casa da minha avó já não existe mais fisicamente, e ainda assim ela continua tão de pé quanto antes nas minhas lembranças.